quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Divino presente

Divino presente

Naquele dia enfumaçado e quente de uma primavera que não pintava verão de jeito nenhum, só me restava torcer por dias mais bonitos de céu imaculado e bons ventos. Não as rajadas que chegavam à tarde, traiçoeiras, fortíssimas, de quebrar vetustas árvores de minha cidade e amedrontar minha plantinha, tão delicada que se fecha à toa, Não, os pingões de chuva a bater ploc-ploc, na grade cilíndrica de metal de minha varandinha. Não os raios que realmente têm partido pessoas ao meio, nos arredores da cidade, como aviso prévio de que um dia nos partirão a nós, urbanos pouco interessados nas grande causas do Planeta.
De fato, sonhei. Recostada qual Maya Desnuda em meu sofá vermelhão-sangue, vieram à minha cabeça os quadros de Natais passados, bem passados. Estávamos na semana que antecede a grande data. Grande? Para mim, que sou católica sem questionar o que me incomoda na religião. E para alguns outros que vão à missa perto de nossas casas para evitar a preguiça.
Pensei no baú vermelho, decorado de preto, pintado por mim mesma, repleto de brinquedos dos meus filhos pequenos, doados aos pobres, na certeza de serem substituídos por outros, de tias, pais, mães e avós.
“ Que fiz eu do baú, Santo Deus? Sumiu por descaso, vontade de me ver livre da lembrança da infância de meus filhotes, que se acabara de chofre, me deixara com xarope de fel na língua para sempre.”
Sem cronologia, foi a vez dos presentes de ouro de meu pai ainda rico, obrigação imposta a sí mesmo, à época mais bonita e alegre da igreja católica. Hoje, contento-me com as imitações anti-ladrão. Mas, no fundo, protesto.
Mil lembranças e o cansaço me pesaram as pálpebras, em sono fora de hora. Deus sabe o que faz: se tivesse insistido no devaneio, viriam os cheiro da comida de minha mãe, a voracidade de meu primo imigrante ao comer, o gosto do vinho do Algarve, contrário à terra nortista de meu pai, presente mal bolado por um amigo...
Acordei duas horas depois, com meu marido recém-chegado do trabalho. Às mãos, discreto, um embrulho pequeno e caprichado. Abro o pacote com cuidado, sinto o odor de meu perfume predileto, sorrio ao homem gentil e, pronto, estou feliz no Natal, de novo.

Maria Lindgren

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